quinta-feira, 14 de abril de 2016

Moisés Caçadeira

Cena 1

Uma planície alentejana onde um homem cavalga lentamente. O vento sopra suavemente. O homem no cavalo segura uma corda que se vê esticada, presa a um outro homem que caminha a pé. Esse mesmo homem tropeça e bate com a cabeça numa pedra, ficando logo ali.

1-Ora porra!

Narrador - No Alentejo não há lei. Longe da capital, a justiça era feita pelo mais forte e sempre em seu proveito. Até que surgiu...

Cena 2

2-Moisés Caçadeira! Muito folgo eu vê-lo. Então o que é que trás o nosso amigo aqui à nossa pacata aldeia.
1-Venho à procura do Coxo.
2-Do Coxo? Qual Coxo?
1-O Coxo.
2-E como é esse Coxo?
1-É Coxo e anda com um canhão chamado Felismino. Seria um mestre do disfarce se não coxeasse.
2-Arra porra, um canhão chamado Felismino. Na deve andar muito depressa realmente. Pois, na conhecemos ninguém assim. Então e o que é que o amigo vai querer?
1-Vinho e presunto.
2-Só um momentinho que tenho que ir à arrecadação

O taberneiro vai a coxear até às traseiras, passando pela cortina de fitas. O espaço que abriu não chega a fechar, saindo do mesmo um canhão que dispara. Vê-se Moisés Caçadeira a ser cuspido para fora da taberna.

Cena 3

Moisés Caçadeira surge de rompante ao Coxo.
2-Que raio! Como é que apareceste aqui, meu grande sacana? Como conseguiste escapar do Felismino?
1-Na sou coxo. - dá-lhe com a caçadeira na cara.

Moisés Caçadeira, a lei chegou ao Alentejo!

domingo, 29 de novembro de 2015

O Homem Que Não Podia Morrer

Cena 1
Viela escura, um grupo de bandidos cerca um homem que tenta fugir mas sem ter qualquer hipótese.

1-Dá-nos a carteira, relógio.
2-Pede-lhe também a roupa!
1- Sim, dá-nos a tua roupa também.

Os bandidos apertam o cerco, rindo e obrigando o homem a encolher-se de medo. No entanto, o ruído de metal a ceder faz-se ouvir.

Narrador:
"Toda a minha vida fui perseguido, desde que era criança. Sempre senti como se tivesse um imã para os problemas. A parte estranha é que... nunca me aconteceu nada de mal"

Os bandidos olham todos para cima quando o barulho de metal a ceder cessa e o vento silva de cima. Um "O" de um lettering de neon do prédio cai em cima deles, deixando apenas como único sobrevivente a vítima que se ergue lentamente. Olha para cima e vê a palavra "HTEL" a piscar. Sobe a letra gigante e vai-se embora a correr.

Narrador:
"Normalmente não acreditam na minha história e os poucos que acreditam... dizem que sou abençoado. Algumas vezes penso que sim, outras vezes... desejava não estar sempre a passar por isto."

Cena 2
Na estrada, um camião cisterna despista-se e forma um efeito tesoura que vai na direcção do carro onde segue o homem. Este em vez de parar e sair do carro, carrega no acelerador enquanto grita.

Narrador:
"Já desejei a morte. Já tentei morrer, mas nunca consegui. Em vez disso, sempre provoquei mortes ao meu redor. Todos morrem e eu fico sozinho".

Um meteorito cai à frente do camião, criando uma cratera por onde se afunda, enquanto o carro onde o homem segue fica com os pneus furados, os quatro, e vai deslizando até ficar com a roda à beira da cratera.

Narrador:
"Só queria estar em paz. Percebe? Estar em paz."

3-Já ouvi falar de muita coisa estranha, já ouvi muitas justificações estapafúrdias, mas esta bate todos os recordes. Tudo bem, nós tratamos disso. Sem qualquer problema. Quando é que...?
Narrador - Prefiro não saber. Por favor, só peço que tenha cui...

Antes que o homem acabe a frase, o assassino puxa de uma arma e aponta-a directamente a ele. Quando puxa o gatilho, a arma explode-lhe na mão e uma das peças da arma enfia-se no seu cérebro. O homem levanta-se e sai da sala calmamente. Pega no telemóvel e liga um número.

Narrador - Já está. O que querem que faça mais?


sexta-feira, 3 de julho de 2015

Mundo em Ruínas

Cena 1 (e única):

Uma paisagem de uma planície alentejana, aparentemente sem vida, vasta, é observada pela câmara que se mantém imóvel. 

Narrador-Sempre me disseram, desde que me recordo, que vivia fechado no meu mundo. Que deveria prestar atenção ao que se passava à minha volta. Para deixar de viver no meu mundo de fantasia. Eles não se apercebiam... eles não percebiam que isso só fez com que eu mergulhasse mais e mais nesse mesmo mundo.

Ao fundo, começa-se a ver uma nuvem de pó a formar-se.

Esse mundo onde eu encontrava os meus verdadeiros amigos, onde nada de mal poderia acontecer. E eles, talvez por incompreensão ou inveja, não sei, tentaram destruir esse mundo, esse mundo onde eu conseguia proteger tudo e todos. Eles não conseguiam ver, não conseguiam compreender. E tal como qualquer bom humano, o que não se consegue perceber, é para destruir.

A nuvem de pó começa a aumentar cada vez mais que se aproxima do ecrã.

Então eles atacaram o meu mundo, numa tentativa vã de me resgatar. Acreditando que destruindo o que não compreendiam seria a única forma de me terem da forma que desejavam. Mas era tarde demais. Eu não ia voltar. E eu não vou. Vou defender este mundo até às últimas consequências, até ao último suspiro.

À frente da nuvem em pó distingue-se uma figura humana, a voar a alta velocidade e percebe-se, apenas em segundos, que a nuvem é causada por ela. A nuvem engolfa todo o ecrã, sentindo-se os grãos de areia, pedaços de terra e árvores a bater contra a câmara.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Liberdade

Cena 1 – câmara a focar a nuca de um homem

1-Sinto-me preso, sabem? Em alturas do 25 de Abril fala-se de liberdade à boca cheia mas cada vez esse conceito me soa mais estranho. Liberdade, o que é isso? É votar? É poder falar? Ou serão essas pequenas definições de liberdade, aquelas usadas para nos cegar quando nos querem presos. Eu olho para todos vocês e apetece-me gritar aos vossos ouvidos, gritar até perder a voz, gritar até que acordem. Mas não é dessa forma que vocês acordam, vocês que vivem nos vossos mundos de plástico, que compram as ilusões das vidas dos outros, na esperança de se tornarem nas vossas ilusões.

A câmara começa a afastar-se

1-Não é assim que alguém que está cego começa a ver, até porque quando a luz vos bater nos olhos, vocês vão fugir, porque não estão habituados. O que conhecem é a escuridão, como vão querer encarar a luz que os cega, mesmo que seja momentaneamente. Sei que não vos interessa nada disto que vos estou a dizer, sei que amanhã vai continuar tudo na mesma, sei que apenas vão encontrar alguém para ocupar o meu lugar. Não me interessa… sinceramente, não quero saber o que vos vai acontecer, não quero perder tempo com alguém que não reconhece sequer a minha existência ou dá valor ao que som. Não adianta perder energia e com vocês estou farto de perder energia. Tal como todos, pensei que a liberdade era um dado adquirido, mas hoje, é-me mais claro que nunca que a liberdade é algo que deve ser conquistada, porque podemos falar, podemos votar, mas se nos mantivermos em cubículos, agarrados ao telefone 40 horas por semana, a nossa liberdade existe apenas para pagar empréstimos e impostos. Hoje eu vou ser livre. Aqui está a minha carta de demissão.

O homem vai-se embora e a câmara foca-se numa mesa comprida, com uma série de executivos a olhar uns para os outros, até que recomeçam a falar como se nada se tivesse passado.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Alma

Cena 1: Estúdio de gravação de música às escuras, onde se distingue apenas uma ténue figura na escuridão imersa nos seus pensamentos, quando é interrompida por uma presença:

1-Ainda não mudei de ideias, caso te estejas a interrogar.
2-Estava com essa esperança, confesso.
1-Não... continuo decidido a ir-me embora.
2-Peço-te, por favor... pensa melhor naquilo que estás a fazer, estás a deixar tudo para trás, toda uma vida, tudo o que construíste. Eu sei que a morte da Teresa te abalou...
1-Tudo o que tinha de mais valioso já perdi, não há mais nada pela qual valha a pena ficar.

Cena 2: O homem está sentado num bar, agarrado ao copo e enquanto está agarrado nele, as pessoas passam à sua volta numa velocidade vertiginosa, enquanto ele se mantém parado no tempo, parado numa combinação de desgosto com auto-compaixão. Até que o tempo volta a andar novamente e há algo que o desperta do coma auto-infligido em que está mergulhado. O som de uma guitarra. Todo o bar silencia e apenas a guitarra fala.

Cena 3: Exterior do bar.
1-Quem é aquela jovem que estava a tocar?
3-É a sobrinha do senhor Rodrigues, o dono do bar. Mas vai com cuidado...

Cena 4:
4-Não estou interessado.
1-Ainda não lhe perguntei nada.
4-Seja o que for que vai perguntar, não estou interessado.

Cena 5:
4-Vá-se embora
1-Ainda não lhe disse o que queria dizer.
4-Ainda não estou interessado.
1-E a sua filha? Será que está interessada ou será que essa sua protecção a vai impedir de viver os seus sonhos?
4-O que é que você sabe dos sonhos da minha filha?
1-Sei o suficiente apenas por ver os olhos dela a brilhar e o sorriso que se forma no seu rosto cada vez que ela está a tocar.
4-A última vez que apareceu alguém como o senhor, cheio de boas intenções em relação ao talento dela, a desilusão foi tão grande que ela quase desistiu de tocar. Tão grande que não havia nada que apagasse a tristeza do seu olhar. Não a vou fazer passar pelo mesmo.

Cena 3:
3-A música é o seu refúgio e a miúda é o refúgio do Rodrigues.

Cena 6:
1-Sei que já foste magoada e sei que não o queres ser outra vez. Olhar para ti é lembrar-me da razão pela qual estou aqui. Estou aqui por estava farto de estar num mundo onde o talento é sugado por sanguessugas, farto de participar nisso, como mais uma ferramenta. Não é isso que quero. Fugi desse mundo, fugi da música porque achava que não tinha mais nada para me oferecer até te ouvir a ti. Não vou pedir nada de ti que não queiras fazer, só vou pedir que sejas quem tu és. E o que tu és, está ligado, preso a essa guitarra que tens na mão.

Cena 7:
4-Avisei que isto ia acontecer e eu devia matar-te por causa disso, mas a culpa não é tua, é minha! Fizeste-me passar por idiota e magoaste-a, a única coisa que pedi para não o fazeres
1-Espera, percebeste tudo mal! A decisão é tua e dela, aquilo que eles disseram foi distorcido e não foi dirigido a vocês e sim a mim.

Voz por cima de uma série de imagens de uma banda a tocar
"Quando cheguei a um momento da minha vida e vi que tinha desperdiçado tudo, que tinha feito todas as escolhas erradas, culpei a música, culpei aqueles que pensava serem meus amigos, culpei todos menos a mim próprio, a minha ignorância e a minha ganância.Vendi aquilo que tinha de mais valor mas foi preciso encontrar-te para perceber que a música é a minha alma e que ela é imortal"


domingo, 28 de setembro de 2014

Corpos

Cena 1 – Hospital

-Eu estou com medo, doutor e não me diga que é ansiedade pelo meu marido ter voltado para casa.
-Se acha que não é ansiedade, qual a razão do seu medo?
-O meu marido… eu não o reconheço mais. Não foi o homem com quem casei.

Cena 2 – Um homem deitado na cama do hospital, com o quarto vazio com excepção de um outro homem a observá-lo.

“Não somos mais que habitantes em casas que julgamos ser nossas. Por vezes… quando o habitante está ausente, a casa… pode mudar de dono”

Cena 1 - Hospital

-Susana, é natural que depois de uma experiência terrível como aquela que a sua família atravessou que existam…
-Não doutor, não é isso. Inicialmente pensei que fosse isso, mas não se trata disso. O meu marido… não é a mesma pessoa. Não fala da mesma forma. Não tem os mesmos hábitos. E ele passa os dias a ver filmes antigos, a pesquisar na internet, não responde quando lhe pergunto o que se trata… Ele… assusta-me. O seu olhar, o seu simples olhar assusta-me.

Cena 2  – O homem que se encontra erguido aproxima-se e funde-se ao que está deitado na cama.

“Por vezes dormimos acordados, por vezes não valorizamos o que temos até que de uma outra perspectiva, passamos a valorizá-lo”

Cena 1 – Hospital

- Falo com ele e o seu olhar atravessa-me, como se não estivesse ali. Não sei o que fazer mais… tenho vontade de fugir.
- Depois de despertar de coma, é normal que exista algumas diferenças no comportamento, que exista alguma dificuldade no voltar à vida quotidiana. Deixe passar algum tempo. De qualquer forma, vou pedir para que ele venha cá para a semana que vem e depois poderemos avaliar a sua evolução.

Cena 2 – O homem que está deitado na cama levanta-se, mas o seu espírito fica deitado na mesma cama.

“Quando acordarmos... e damos conta que é tarde demais, que estamos longe de casa... não temos outra alternativa senão procurar o caminho de volta. O meu corpo é o meu templo, a minha casa. Este é o meu caminho para casa.”

O espírito levanta-se da cama.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Incubo

Cena 1

Escuro, respiração pesada, bater do coração, passos vagarosos
- Sinto uma presença constante. Assim que fecho os olhos, sinto que não estou sozinha em casa.

Cena 2
Conversa entre duas pessoas, uma delas médico
- Não será algo que resulta de estares sozinha agora que te separaste?
- Não, não é isso. Antes de separar-me já passava por isto. Falei com o Pedro mas ele não acreditou em mim. Aliás, foi uma das razões que levou à nossa separação, eu sentir-me sozinha em muitos aspectos da minha vida.
- Ok… e não será sentires-te sozinha, independentemente de estares ou não, que originou tu sentires isso?
- Não sei… é real demais para ser coisas da minha cabeça (não deixando o amigo interromper) eu sei o que vais dizer, mas eu sei o que sinto. Peço-te que confies em mim.

Cena 1

Negro, respiração profunda e o bater de coração acentuado.

Pensei que fosse da minha casa, mas já senti noutros sítios. Aquele respirar que parece que chama por mim…

Cena 2
- Sendo só isso, não será algo que consigas ultrapassar com um comprimido para dormir ou assim.
- Não é só isso… (a mulher abre um botão da camisa revelando as nódoas negras no peito).

Cena 1

Do escuro, começa-se a ver a luz a vir do interior de um quarto que tem a porta fechada. A batida de coração aumenta. A luz apaga-se.

Os ataques começaram na semana a seguir à separação e estão a ser cada vez mais frequentes. Tenho medo de dormir, tenho medo de ficar sozinha. Não sei o que mais fazer. Tenho medo daquilo que ele possa fazer

Cena 2

- Ele?
- Sim… ele. Eu sei que é um homem, o seu fedor por vezes parece que fica entranhado na minha pele, sinto-me suja e por mais que me lave não consigo com que este cheiro e esta sensação desapareça.

Cena 1

Na escuridão, a pulsação aumenta, a respiração torna-se ainda mais pesada até que tudo pára. Ouve-se o barulho de uma porta a abrir, lentamente. A luz acende-se e grita. A porta fecha-se bruscamente e fica escuro novamente.